Crítica Livre | Documentário "Eu Maior"

30 de outubro de 2014

Antes de mais nada, é bom esclarecer que esta crítica é de inteira responsabilidade minha. Eu, que faço-me público por meio deste blog pessoal, o qual não tem outro objetivo além de permitir me expressar. O que você irá ler, então, são apenas as minhas impressões pessoais acerca do documentário "Eu Maior". Enquanto o assistia, procurei contrastar, de uma forma crítica, os depoimentos das pessoas com alguma experiência que adquiri nesses meus quase vinte e um anos de vida. Assim sendo, o leitor fica ciente de que estas palavras são ditas por um jovem rapaz que também procura questionar a vida, tal qual o documentário nos incita a fazer.
Esta crítica é uma tentativa de desconstruir os preconceitos morais que por vezes cultivamos sem saber para, assim, apontar algum caminho que nos permita preencher nossa existência com o sentido que cabe a nós mesmos buscar; dar uma visão crua e objetiva da vida, sem rodeios em volta dos tais mistérios que a envolvem; promover a reflexão acerca do autoconhecimento e da felicidade humana.
A crítica não tem foco na produção do documentário, mas na visão dualista da existência (matéria-espírito) que é compartilhada pela maioria dos entrevistados, assim como nas conclusões e ensinamentos por eles compartilhados, os quais têm como ponto de partida exatamente essa visão que, como tento explicar, não parece estar em concordância com aquilo que podemos observar da realidade.
O texto é longo, então agradeço de antemão a disposição caso você consiga ler até o fim. E, se isso ocorrer, não deixe de comentar algo ou manifestar qualquer impressão que tiver. O espaço é livre.

Eu Maior 

De acordo com informações do site eumaior.com, a realização do documentário foi feita com a contribuição de centenas de pessoas por meio de uma iniciativa de crowdfunding. O filme está disponível no YouTube desde novembro de 2013 e "traz uma reflexão contemporânea sobre autoconhecimento e busca da felicidade, por meio de entrevistas com expoentes de diferentes áreas, incluindo líderes espirituais, intelectuais, artistas e esportistas". Toda o trabalho ficou muito bom e o documentário é digno de grandes produções cinematográficas. A trilha sonora possui uma "aura" de tranquilidade e, de certa forma, transporta o espectador para "dentro" do filme, já que, com as constantes imagens da natureza que são apresentadas, cria um ambiente mais propício para a absorção das experiências compartilhadas. 

Os entrevistados 

Os depoimentos são dados por pessoas de diferentes perfis. Fotógrafo, engenheiro, astrólogos, músicos, esportistas, ativista LGBT, índio, cineasta, teólogos, atores, físicos, líder política (destaque para a participação de Marina Silva), filósofo (destaque para a participação do filósofo Mário Sérgio Cortella), missionária budista, médico, escritores, psiquiatra, bispo, professor de Yoga, espíritas, psicólogo, educador, letrados, pintora e ativista social. Alguns dos entrevistados compartilham de mais de um desses perfis.

Monja Coen Sensei é missionária oficial da tradição Soto Shu de Zen Budismo.
Obviamente, são pessoas diferentes que vivem realidades diferentes, mas o que eu encontrei em comum com a maioria delas foi o compartilhamento de uma visão dualista da vida humana. A saber, a visão do homem como sendo o resultado da interação e um corpo material e uma mente imaterial. Basicamente, são pessoas que acreditam e se preocupam em levar uma existência em comunhão com o corpo e o "espírito". Durante todo o filme expressões como transcendência material, essência da vida, espiritualidade humana, substância, sintonia com a natureza, entre outras, são ditas pelos entrevistados.
Os únicos que, em meu julgamento, não compartilharam dessa visão "romantizada" da existência foram o filósofo Mário Sérgio Cortella e o psiquiatra Flávio Gikovate. Este último, diz uma frase que me parece bastante lúcida: "a vida não tem sentido nenhum, mas não é proibido dar-lhe algum. Esse é um pensamento libertário e dá seriedade à ideia da vida". Essa falta de sentido para a vida (ou para a existência) é a conclusão de um dos conceitos filosóficos mais intrigantes para mim: o niilismo.

Niilismo

Niilismo, do latim nihil, significa nada. Tudo é nada, tudo é vazio, tudo carece de propósito e nada tem finalidade. A água não existe para tornar a vida na Terra possível, mas a vida é possível pois por acaso existe água. Tudo é da forma que é porque é assim e pronto. Não há nada por trás do mundo material, e o único ser que tenta dar algum sentido para tudo é o homem, de modo que o sentido não está nas coisas, pois é a infantil ilusão humana que a faz pensar que as coisas precisam de sentido para existir. Essa visão é bastante radical, concordo, mas é o resultado que se pode chegar se questionarmos a existência com honestidade, abandonando as muletas metafísicas que nos dão segurança e conforto.

Friedrich Nietzsche (1844-1900), filósofo alemão.

A ideia do vazio da existência não é de fácil absorção, pois ao se retirar o sentido da vida, viver se torna desnecessário. Por que buscar a felicidade se a felicidade não faz sentido? Nietzsche nos dá alguma sugestão: se somos vivos, que absorvamos o abismo da falta de propósito, abandonemos nossas ilusões, superemos esse homem reativo e passivo que fomos até então, que chora clamando por um sentido além da vida, tornemo-nos donos de nossas existências e vivamos da melhor maneira possível, sempre ativos frente à vida. Grosseiramente, é essa a ideia que o filósofo tenta nos transmitir. Assim sendo, ao tomarmos as rédeas da nossa vida, podemos dar a ela o sentido que quisermos. Lembre-se da frase dita por Flávio Gikovate anteriormente: "a vida não tem sentido nenhum, mas não é proibido dar-lhe algum. Esse é um pensamento libertário e dá seriedade à ideia da vida". Alguma semelhança? Toda, pois é exatamente isso. Ao aceitarmos que a vida não tem sentido algum, e que é nossa a responsabilidade de dar-lhe algum propósito, tornamo-nos livres e ela passa a ser nosso maior investimento.

A felicidade sob uma perspectiva objetiva

Da visão niilista, podemos concluir que a felicidade nada mais é que um nome arbitrário dado para à busca de se viver da melhor forma possível. Mas como? André Cancian, no livro O Vazio da Máquina, disseca o conceito de felicidade e nos traz algumas reflexões interessantes.
A maioria de nós tem a crença de que no futuro nossas vidas serão melhores, com a existência conspirando para realizarmos nossos sonhos. Esse dia será o marco divisor entre o agora angustiado e um futuro em que seremos felizes. O problema é que não reconhecemos a chegada desse futuro até que tenha se tornado uma velha memória, como se nossos sonhos fossem mosaicos: de longe, belos, mas à medida em que nos aproximamos, os detalhes se tornam grosseiros, e quando os alcançamos não enxergamos mais a imagem que nos seduzia. A figura só fica nítida novamente quando se torna um passado distante, enchendo-nos de nostalgia. Resumindo: a felicidade que exigimos do mundo não cabe no presente, e quando o futuro chega nunca encontramos nele a felicidade que esperávamos. No documentário, Richard Simonetti, intelectual espírita, diz alguma coisa parecida: "as pessoas estão esperando por uma estação para serem felizes. Quando eu crescer, quando eu me formar, quando eu me casar, quando eu tiver filhos, quando eu tiver dinheiro, quando eu tiver um patrimônio, quando eu tiver saúde. Então as pessoas estão sempre transferindo a felicidade para uma próxima estação, por isso não são felizes. Não há uma estação, mas uma maneira de viajar".

Richard Simonetti, atuou durante 36 anos como Presidente do Centro Espírita Amor e Caridade, de Bauru.

Ainda em Cancian, a felicidade, nesse sentido, tem quase um aspecto teológico, algo superior a nós. Não acreditar nela é quase um tabu (assim como não acreditar em deuses), mesmo que no fundo sua busca seja irracional, pois sequer sabemos definir essa tal "estado de espírito". Pois bem, o que é a felicidade? Em uma visão objetiva, a felicidade nada mais é que a liberação de alguns hormônios no nosso organismo. A função desse mecanismo de manipulação química do nosso cérebro é permitir que ajustemos nossa sensibilidade a circunstâncias particulares, fazendo com que nossa percepção da realidade se ajuste às nossas necessidades. No nosso dia-a-dia, estamos sob a ação de constantes recompensas de prazer. Quando desmotivados, sentindo o peso do tédio, estamos experimentando um quadro de abstinência natural. Esse tédio funciona como um aviso para nos manter constantemente em busca das nossas doses diárias de prazer.
Tendo entendido esse mecanismo da vida, podemos concluir que é possível nos valermos da nossa inteligência para nos manipular e fazer com que nosso cérebro reproduza os estados mentais que nos agradam. Podemos provocar essas sensações usando drogas sintéticas, que nos induza a estados de alegria, consumindo freneticamente os produtos do mercado, manipulando as pessoas, fazendo tudo aquilo que não é bom aos olhos da sociedade, mas nos trazem prazer e felicidade, ou, em contrapartida, amando uma pessoa, entrando em contato com a natureza, praticando meditação, orando, praticando o desapego, contemplando deuses, tal como alguns entrevistados do filme nos aconselham. A questão da felicidade é apenas um tabu moral, porque a sensação de prazer que sente alguém que ama ou alguém que mata é a mesma: é tudo química no nosso cérebro.

André Cancian, responsável pelo site ateus.net e escritor.

Quando dizemos que se deve procurar a "verdadeira felicidade" estamos no fundo dizendo que devemos procurar aquilo que recompense nosso cérebro, mas que não seja rejeitado pela sociedade. Alguém poderia argumentar que conhece exemplos de pessoas que saíram das drogas e hoje são muito mais felizes com suas famílias e sua religião. Eu diria que, quando estas pessoas usavam drogas, naquele momento elas eram felizes. Sim, pois elas estavam trocando uma droga natural (aquela que o cérebro despeja na nossa corrente sanguínea) por uma sintética, mas a sensação é exatamente a mesma. A diferença é que esses momentos de felicidade são curtos, pois não há como mantê-los sem que se precise fazer uso de drogas o tempo todo. Assim, quando cessa a sensação, a pessoa se enxerga à margem da sociedade, rejeitada e dependente de um prazer que, além de ser prejudicial caso exagerado, não te permite conviver com o restante das pessoas que estão buscando estimular seus cérebros naturalmente. Logicamente, ao voltarem à sociedade e encontrarem formas de prazeres aceitáveis, a vida se torna muito mais leve. Entretanto, não significa que encontraram a verdadeira felicidade, mas apenas trocaram os estimulantes artificiais pelos naturais, que são bem aceitos socialmente.
Desse modo, os meios em que se busca a felicidade são irrelevantes, pois o efeito final no organismo é o mesmo. Assim sendo, as melhores fórmulas para se alcançar a felicidade são aquelas em que você consegue, naturalmente, extrair recompensas de seu cérebro. Melhores sob o ponto de vista da convenção social, é claro. Mas o mais importante a se entender é: o funcionamento dessas fórmulas depende de quem são as pessoas, em que meio estão inseridas, qual é sua história, quais são suas motivações, seu histórico genético etc. Lembre-se: as pessoas são diferentes.

Droga sintética é felicidade comprada?

E aquele velho clichê que diz que a felicidade está nas coisas mais básicas é mesmo válido, pois ao abandonarmos a ideia de que a felicidade está no futuro e que haverá o dia em que ela cairá do céu, passamos a entender que o que precisamos é procurar atividades, relacionamentos, conhecimento ou seja lá o que for que permita que nosso cérebro seja recompensado em intervalos capazes de manter nosso bem-estar.
Para finalizar essa parte, digo que para mim o questionamento honesto leva ao niilismo. Não consigo imaginar outra conclusão. Assim, só chegando no fundo do poço teríamos propriedade para buscar e justificar algum sentido, mesmo que apenas para nos mantermos vivos. Sem isso, tudo é ilusão cega, já que apenas aquele que absorve a ideia de uma existência niilista é capaz de enxergar que sua vida é ilusão. É claro que não posso exigir que as pessoas compartilhem da mesma opinião. Todos somos diferentes e damos nossos próprios sentidos à vida, mesmo que esse sentido seja por nós absorvido como certo por influência de alguma religião ou corrente filosófica, sem antes passar pelo filtro da razão honesta. Assim é que funciona o homem. Entretanto, acho importante sair da zona que nos conforta, questionar nossas certezas e admitir nossas ilusões.
Logo, quem acha que encontrou o sentido da vida, siga-o, mas não queira que as pessoas façam o mesmo, pois isso faz sentido apenas para você. Se você acha que o homem deve saber equilibrar um tal espírito imaterial e seu corpo, busque seu equilíbrio e não seja chato querendo que as pessoas sigam seus passos. Digo isso porque em quase todos os depoimentos do filme eu identifiquei uma visão dualista do homem, como se este fosse composto por uma mente independente que habita um corpo material, e meu mau relacionamento com essa visão vem de longa data...

A minha visão do dualismo matéria-espírito

"Se nós pensarmos na criação do universo, há quinze bilhões de anos e um segundo atrás, não existia nada, de acordo com a teoria do big-bang. Então, pensemos nessa grande explosão como uma metáfora de ondas concêntricas. Quando você joga uma pedra em um lago de águas tranquilas, o que acontece? Você forma ondas concêntricas. Pensemos nessa grande cadeia do ser como sendo essas ondas concêntricas. A primeira onda que se formou é a onda da matéria. Partículas subatômicas formando átomos, átomos formando moléculas, galáxias, sóis etc. Posteriormente, há cinco bilhões de anos atrás, surgiu a Terra. Há três e meio bilhões de anos atrás surgiu a segunda onda, a vida na Terra, e essa vida então partiu de todo um processo de organismos unicelulares, por uma cadeia filogenética vegetal e animal, até os mamíferos superiores. Então, há cerca de um milhão de anos atrás, apareceu a terceira onda, que chamamos "a onda da mente", e esse processo de expansão de níveis de consciência ainda vem acontecendo. A ciência tradicional para por aqui, ela não vai além, mas você há de convir comigo que esse processo deve continuar. Então existe um quarto nível, que seria o nível do espírito, que seria um nível de transcendência desse nosso macronível atual, que é o nosso nível do ego, em que nós nos vemos como uma individualidade. Nós seremos algo mais que isso. Esse é o conceito do grande ninho do ser, que é um conceito que existe desde as tradições de sabedorias antigas e que hoje podemos fazer uma releitura através desse processo de conhecimento que a evolução nos trouxe."

Ari Raynsford, engenheiro e especialista em Spiral Dynamics, modelo de percepção dos níveis de consciência humana.

Essa é parte da entrevista de Ari Raynsford, doutor em Engenharia Nuclear e Mestre em Engenharia Mecânica pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT). Sinceramente, você entendeu algumas coisa? Eu não. E minha intenção não é focar na pessoa do doutor, mas me posicionar a respeito desse tipo de discurso.
Não é a primeira vez que escuto ou leio coisas desse tipo. No livro "O Segredo", a autora Rhonda Byrne nos diz que o poder da mente é capaz de atrair coisas maravilhosas em nossa vida, desde que a gente passe a cultivar bons pensamentos. Com uma explicação cheia de termos emprestados da verdadeira ciência, ela tenta nos convencer que a força do pensamento positivo (sendo o pensamento um processo mental, independente da matéria) tem influência no mundo material, como uma espécie de super poder reprimido. Eu não posso dar muitos detalhes sobre a obra porque quando tentei ler não consegui passar da décima página, mas acho isso tudo uma baboseira tremenda, divulgada por gente que não tem compromisso com a realidade e quer nos convencer que suas fantasias são a verdade.
Rhonda Byrne, autora do bestseller O Segredo.

A minha crítica ao dualismo mente-espírito diz respeito ao fato de que essa tese não é verificável. Quando olhamos para o nosso cérebro o que vemos é uma massa cinzenta, conectando neurologicamente as diferentes partes do nosso corpo, contendo bilhões de neurônios que o transformam no processador mais potente do nosso mundo conhecido. Ele é o responsável pela nossa vida mental. É com ele que interpretamos a existência material, e é a partir dele que podemos processar as sensação advindas da experimentação do mundo. Embora não saibamos como o cérebro funciona em sua totalidade, sabemos que é tudo matéria, não há um espírito por trás, somos apenas corpos capazes de sentir a existência, e me incomoda quando as pessoas querem me convencer do contrário sem tentar ao menos demonstrar o que estão dizendo.
Talvez essa herança venha de Platão, quando ele diz, com sua teoria das ideias, que não podemos confiar nos sentidos, já que estes apenas experimentam um mundo aparente e não conseguem ter acesso ao mundo das ideias, ao mundo verdadeiro. Não sei se a herança realmente foi deixada por ele, mas em algum momento o homem concebeu essa ideia e ela ainda está presente em nossas dias, mesmo que possuamos o histórico e as ferramentas capazes de demonstrar que tudo isso não passa de ilusão para tentar dar algum sentido a uma existência que carece de um.
Eu, particularmente, não tenho problemas com quem tem essa interpretação da existência. Não muda a minha vida. O que acho realmente estranho é que uma das mensagens do filme é: questione a vida. Se assim é, por que simplesmente aceitar que o homem possui um espírito e daí tirar todas as outras conclusões a respeito da existência? Se a base de tudo é o equilíbrio espírito-corpo, e se essa tese é inverificável, todos os ensinamentos em favor de uma felicidade que tenha esse princípio caem por terra.

Os mistérios da vida

As perguntas que muitos entrevistados disseram fazer a si mesmos são do tipo "quem sou eu?", "o que é a vida?", "qual é o sentido da vida?", "o que me espera depois da morte?". De fato, diversas vezes nos perguntamos coisas desse tipo durante nossa passagem por esse planeta. Tenho para mim que essas perguntas são importantes, e se as investigarmos a fundo podemos encontrar respostas muito interessantes.
O que é a vida? Bem, em uma visão niilista a vida nada mais é que um fenômeno físico, material, um evento que ocorreu há alguns bilhões de anos. De acordo com a teoria da evolução, tudo começou com aqueles organismos unicelulares que, multiplicando-se, sofrendo mutações, migrando para outros ambientes, adaptando-se a diferentes espaços, explorando o planeta, transformando-se em seres complexos e diferenciando-se em espécies durante todo esse tempo, chegaram à configuração que hoje podemos observar (aliás, o processo não para). Fria e diretamente, isso é a vida e não há nada por trás, de modo que a pergunta "qual o sentido da vida?" não faz sentido, já que parte do pressuposto de que a vida tem um sentido, e, pelo que sabemos, não tem.
Já a pergunta sobre para onde vamos após a morte é mais fácil de responder: para debaixo da terra. Ao abandonar a ideia de que o homem é o resultado de uma mente imaterial e um corpo material, e assumir que a mente é apenas o resultado de fenômenos físicos ocorridos no cérebro, podemos concluir que ao se encerrar a atividade nesse cérebro só nos resta um corpo que não sente, que não sabe que existe, que não questiona, tal qual uma pedra, um armário ou um bolo de chocolate. Assim sendo, não há alma, não há espírito, não há além vida. Tudo começa e termina aqui.

A vida após a morte.

A pergunta mais complicada de se responder é "quem sou eu?", não por ser uma resposta transcendental difícil de encontrar, mas porque a resposta é diferente para cada pessoa. O homem pode ser definido como um ser subjetivo, pois possui um cérebro que o permite interpretar, ter consciência do mundo e raciocinar a respeito dessas impressões. Mas essa subjetividade é tão individual quanto qualquer outra coisa no mundo. Eu interpreto o mundo objetivo de uma forma, meu vizinho de outra, você de outra, e assim por diante. Mesmo que descrevamos a matéria objetiva com as mesmas palavras, nossa percepção não pode ser totalmente compartilhada, pois não temos acesso ao mundo subjetivo da outra pessoa. Resumindo: o homem como espécie é de fácil definição objetiva, mas a resposta sobre quem é o homem individual é pessoal e intransferível.
Para algumas pessoas essas respostas podem ser absurdas, pois parece retirar da vida alguma essência que esta, aparentemente, deveria ter; parece retirar aquilo que nos torna humanos e nos deixa no mesmo patamar que qualquer outro ser vivo, transformando-nos em máquinas biológicas que vivem por viver. Mas, ora bolas, não é isso o que somos?! Eu não consigo engolir essa necessidade de se sentir especial diante do restante do universo apenas por se ter um cérebro mais desenvolvido... Olhando de perto, tudo é átomo. As diferenças entre nós e uma pedra são, basicamente, a configuração dos átomos dos nossos corpos e nossa capacidade de julgar qual pedra é mais pesada quando seguramos duas delas com as mãos. Nada mais que isso.
É óbvio que existe o grande mistério: de onde veio tudo isso? Sabemos explicar como chegamos até aqui, mas nada sabemos sobre o que aconteceu antes da grande explosão e provavelmente nunca saberemos. Há a hipótese de que algum deus tenha criado tudo isso, mesmo assim o mistério não pode terminar aí, pois se assim é, de onde veio esse deus? Bem, o máximo que podemos fazer é especular, especular e especular, de modo que tudo isto é tão inútil quando a própria existência.
Portanto, os grandes mistérios da vida nada mais são que mistérios criados por nós próprios a partir dessa necessidade infantil de ter que atribuir significado àquilo que existe por existir.

A resposta à Questão Fundamental da Vida, do Universo e Tudo Mais, de acordo com Douglas Adams

Douglas Adams, escritor da minha série de ficção científica favorita, O Mochileiro das Galáxias, brinca com esses questionamentos a respeito do sentido da existência em uma das passagens mais emblemáticas da série. Na história, uma "espécie de seres pan-dimensionais hiperinteligentes", empenhada em descobrir de vez qual é a resposta para tudo isto que nos rodeia, cria um supercomputador, o Pensador Profundo, capaz de calcular "a resposta para a pergunta fundamental da Vida, o Universo e Tudo Mais". Sabendo disso, dois filósofos protestam contra. Nas palavras de Majikthise, um deles:
- Essas máquinas têm mais é que fazer contas, enquanto nós [filósofos] cuidamos das verdades eternas. [...] Pela lei, a Busca da Verdade Última é uma prerrogativa inalienável dos pensadores. [...] Se uma porcaria de máquina resolve procurar e acha a porcaria da Verdade, como é que fica o nosso emprego? O que adianta a gente passar a noite em claro discutindo se Deus existe ou não pra no dia seguinte essa máquina dizer qual o número do telefone dele?
O outro, Vroomfondel, complementa:
- Isso mesmo! Exigimos área de dúvida e incerteza rigidamente delimitadas.
Douglas Noel Adams (1952-2001), autor da série O Mochileiro das Galáxias, uma trilogia de cinco livros.

No fim das contas, os filósofos e o supercomputador entram em um acordo, já que o programa responsável pelo cálculo da resposta à Questão Fundamental levaria sete milhões e quinhentos mil anos para ser processado e os filósofos teriam tempo suficiente para seguir com seus trabalhos.
Pensador Profundo: - Ocorre-me que um programa como esse certamente há de gerar uma publicidade imensa para toda a área de filosofia. Todo mundo vai elaborar uma teoria a respeito da resposta que eu vou dar no final. E ninguém poderá explorar melhor essa situação nos meios de comunicação do que vocês. Enquanto vocês continuarem a discordar violentamente do outro e a atacar-se mutuamente na imprensa e a contratar bons agentes, vocês garantem sombra e água fresca pro resto da vida. É ou não é?
Após essa resposta, os dois filósofos olham boquiabertos para o supercomputador.
- Isso é que é pensar de verdade, o resto é conversa fiada. Me diga uma coisa, Vroomfondel, como é que a gente nunca tem uma ideia dessa? - pergunta Majikthise.

- Sei lá. Acho que é porque nossos cérebros são treinados demais, Majikthise - responde Vroomfondel.
O mais legal de toda essa ironia é que, passados os sete milhões e quinhentos mil anos, Pensador Profundo realmente chega a uma resposta. O problema é que essa resposta não é muito animadora. Veja um trecho do filme O Guia do Mochileiro das Galáxias, baseado no livro homônimo:


Quarenta e Dois? Sim, de acordo com Pensador Profundo, essa é a resposta para os mistérios da Vida, do Universo e Tudo Mais. O que isso significa? Significa que Douglas Adams gostava de tirar sarro de sua própria condição humana, pois é óbvio que não precisamos levá-lo a sério. Mas a conclusão que eu tiro disso tudo é que o tal sentido da existência pode significar aquilo que eu quiser que signifique, o que reforça aquela ideia do início, a qual cito pela terceira vez: "a vida não tem sentido nenhum, mas não é proibido dar-lhe algum."
Saindo do mundo da literatura, voltemos ao abismo deixado pela conclusão de que os grandes mistérios da existência não passam de invenções humanas...

O que nos resta, então?

Nesse ponto, você pode estar se perguntando: se nada tem sentido, então por que você continua vivendo? O mais próximo que eu posso chegar de responder isso é dizer que devo viver porque essa é minha única condição enquanto ser. A morte material não resolveria o impasse da inexistência de sentido para a existência, pois morrer faz tanto ou nenhum sentido quanto viver.
Então, já que só me resta a vida, tenho de vivê-la da melhor forma possível, pois nada pode ser mais idiota que escolher viver em sofrimento. A existência é indiferente quanto a mim e quanto a qualquer coisa. Assim, se ela não se importa se eu sofro ou não, eu é quem tenho de me dar essa importância; eu é quem tenho de ser o meu maior investimento enquanto vivo; eu é quem tenho de tomar as rédeas da minha própria vida. O caminho contrário seria me tornar um vegetal, absorvendo a nulidade da vida enquanto morro aos poucos. E, perceba você, essa escolha é totalmente arbitrária. Quando digo que é o melhor caminho digo isto pensando na ideia do sofrimento que qualquer outra alternativa nos traria enquanto seres dotados de capacidade de percepção. Assim como para um animal irracional é melhor continuar vivo a morrer sofrendo, também o é para nós. Se há dúvidas sobre isso, ameace um cachorro com um pedaço de pau (não o faça!) e o verá correr para salvar sua vida, pois mesmo não sabendo explicar, ele sabe que prefere a vida que a morte ou a dor.
Para viver da melhor forma possível, temos que encontrar nossas pequenas doses de prazer, estejam onde estiver. Nosso cérebro precisa delas para que nos sintamos bem. Se a encontramos nas pessoas, na natureza, nas drogas, nos relacionamentos, nos animais, nos vídeo-games, na literatura, na arte, na música... pouco importa. Estamos condenados a ser livres, e estando livres devemos encontrar nosso próprio sentido para a vida. Não é um líder religioso que nos dirá o que devemos fazer, nem um político, um psicólogo, um astrólogo, um cientista, uma cartomante, um escritor, um filósofo. Os outros estão empenhados em dar sentido às suas próprias existências e não têm autoridade para dar palpites em nossas vidas, pois não têm acesso ao nosso mundo subjetivo. Digam o que disserem, nada pode tocar o nosso íntimo, ninguém pode compreender o que sentimos a não ser nós próprios. Não há fórmulas que funcionem para todos. Nenhuma palavra consegue representar a subjetividade, pois a palavra é fixa e a vida é um eterno devir.

Considerações finais

Tentei com esse texto dar a minha posição a respeito do documentário "Eu Maior". Percebo que me alonguei bastante, mas não poderia ser diferente. Há tempos eu tenho vontade de falar sobre esses assuntos e, como surgiu a oportunidade, não medi esforços. A existência muito me interessa, e sempre me sentirei atraído por discussões que a envolvam.
Comecei apresentando informações sobre o documentário e as pessoas entrevistadas. A partir daí expliquei a posição niilista a respeito da existência, numa tentativa de retirar todos os preconceitos morais da equação para preenchê-la novamente com o sentido que nós mesmos escolhermos dar à vida. Com essa explicação, foi possível dar uma definição objetiva a respeito da felicidade, sendo esta apenas o resultado de alguns processos químicos que ocorrem no cérebro, de tal modo a nos fazer sentir bem. Vimos que os prazeres naturais funcionam da mesma maneira que aqueles prazeres que resultam de processos artificiais, de modo que basta escolhermos quais queremos fazer uso. Assim, a felicidade perde o status de algo transcendental e passa a ser uma condição para o organismo manter sua percepção ajustada com uma realidade necessária para a manutenção da vida. Logo depois, passei minhas impressões sobre a ideia dual do homem, como sendo formado por uma mente imaterial independente e um corpo material. Tentei, assim, desconstruir essa ideia e concordar com a única interpretação que podemos tirar ao observar o mecanismo da vida: tudo é matéria.

Conhece-te a ti mesmo.

Discutimos ainda a respeito dos mistérios da vida, e vimos que eles não passam de invenções humanas, numa tentativa de significar aquilo que não carece de significado para existir. Após todo esse processo de desconstrução das nossas convicções, tratei sobre o que nos resta fazer ao chegarmos na estaca zero. Concluímos que ninguém pode nos dizer o que fazer, e as fórmulas compartilhados pelas pessoas funcionam apenas para elas, de modo que não há outro caminho a ser trilhado a não ser aquele que nos leva a descobrir o que nos motiva a continuar vivendo.
Toda essa crítica não foi uma tentativa de invalidar os esforços dos realizadores do projeto "Eu Maior", pois pelo que me parece não é a intenção deles nos apresentar um manual da vida, mas apenas nos dar a oportunidade de ter contato com diversos perfis de pessoas que estão procurando suas próprias felicidades, e sempre é válido compartilhar experiências.
O documentário está mais que recomendado, mas fica o alerta para não se tomar como verdade aquilo que funciona para as outras pessoas, pois elas são diferentes de nós e suas soluções podem não ser as que buscamos para nós próprios.
Por fim, compartilho aquela mensagem inscrita no templo do oráculo de Delfos e que o documentário por vezes compartilha: conhece-te a ti mesmo. E, indo além, digo para que você mesmo busque um sentido para sua existência, pois a vida está muito ocupada existindo para se importar com suas lamentações.

7 comentários:

  1. Assisti no ano passado, gostei muito. E que critica longa e complexa! :)

    Sr. sumido, beijo!

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    Respostas
    1. Concordo que ficou longa, e fico surpreso que tenha lido até o fim haha. Eu provavelmente passaria direto...

      Estou te devendo uma resposta no e-mail, hein?!. Perdão pela demora mais uma vez haha... Vou te responder!

      Beijos ^^

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  2. Toda essa questão sobre o sentido da vida logo após eu ter assistido o filme "O Sentido da Vida", do Monty Python...
    Usando algumas palavras da Veronica: "que crítica longa...". Não tão complexa devido a minha semelhante visão sobre o tema. Quanto ao documentário, não conhecia...

    Devemos manter a mente aberta, mas não tão aberta a ponto do cérebro cair. - Carl Sagan

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    1. Caramba, você leu! Obrigado, Gessy hahaha...

      Legal saber que você tem uma visão semelhante sobre isso tudo. Geralmente as pessoas olham torto pra essa posição "materialista" da vida. A desculpa quase sempre é que isso tira a "essência" dela, mas pra mim só a torna mais interessante e bela... Como diz Douglas Adams: "Não basta apreciar a beleza de um jardim, sem ter que acreditar que há fadas nele?"

      Gostei dessa dica de filme. Vou procurar ^^

      Essa frase é demais! Se eu não me engano eu a ouvi no audiobook que você me passou... É isso né? Se não for eu já vi em algum outro lugar...

      Ah, sem querer você acabou me lembrando que eu esqueci de dizer uma coisa nesse texto, então eu fui lá e complementei (e o que era longo ficou mais ainda haha). Se você quiser ler, dê um ctrl+f aí em "A resposta à Questão Fundamental da Vida, do Universo e Tudo Mais, de acordo com Douglas Adams".

      Obrigado pelo comentário ^^ Sempre gosto.

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    2. Assisti O Sentido da Vida. Muito bom! Gostei demais das críticas haha

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    3. Ótimo update, hahaha
      Sim, tem essa frase no audibook, mas também é possível que a tenha visto em outro lugar, em muitos lugares, aliás. Ha!, e não é que tu ouviu mesmo :D

      Essa foto do Douglas Adams, cara... A "cara" dele, huehue

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    4. Obrigado! haha

      Pois é... certeza que já vi essa frase por aí...
      Eu ouvi o prefácio e o capítulo 1, mas to convencido de que me dou melhor lendo que ouvindo :( Eu me distraio com facilidade escutando as coisas (e eu gosto de riscar os livros uashuash).

      Sobre a foto do Douglas Adams: sem comentários haha.

      Beijos :)

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