Crítica Livre | Filme "Quase Deuses"

28 de outubro de 2014

Something the Lord Made, adaptado para o português como “Quase deuses”, é um filme produzido e distribuído em 2004 pela HBO e que, baseado em fatos reais, conta a história do técnico de laboratório Vivien Thomas. Sendo negro, ele tem de superar as discriminações que sofre em uma época na qual as pessoas são divididas por suas características raciais. Vivien colabora com as pesquisas do Dr. Alfred Blalock, pesquisas estas que acabaram culminando na primeira cirurgia cardíaca realizada em humanos.
A crise de 1929, que teve impacto em diversos países do mundo, provocou mudanças sociais de forma radical no Estados Unidos, local onde se passa história. O personagem principal do filme é vitimado por essa situação, assim como diversas pessoas que tiveram seus investimentos perdidos quando os bancos começaram a falir. Vivien perde as economias que juntava para pagar a tão sonhada faculdade de medicina e é despedido de seu antigo emprego na carpintaria, tendo que passar a prestar serviços de limpeza no laboratório de pesquisas do Dr. Blalock. Nesse momento, os talentos medicinais de Thomas são percebidos pelo médico que, apesar de arrogante e insensível, não revela comportamentos preconceituosos para com seu futuro ajudante de laboratório. O ex-carpinteiro demonstra grandes habilidades com os instrumentos cirúrgicos, e seu conhecimento sobre as peculiaridades da medicina impressionam o Dr. Blalock.
Com experiências feitas em cães, eles passam a trabalhar em conjunto na tentativa de encontrar uma cura para uma doença cardíaca que afetava crianças em todo o mundo: a Síndrome do Bebê Azul. Os dois viviam um impasse, uma vez que as normas éticas da medicina da época diziam que nunca se devia trabalhar o coração, pois os riscos eram enormes. Dessa forma, Alfred vai contra todos os tabus impostos e, com o apoio e as descobertas de Vivien, consegue realizar com sucesso a cirurgia em uma criança que tinha sua sentença de morte prevista para seis meses. Após isso, os boatos sobre a nova descoberta da ciência percorrem o mundo, e o Dr. Blablock fica conhecido internacionalmente como o homem que mudou os rumos da medicina.
Toda a produção do filme é muito interessante e, indo um pouco além da perspectiva recreativa, pode-se analisar aspectos sociais importantes presentes nos fatos que ocorrem no decorrer da trama. Temas como o preconceito racial, a divisão de grupos por classes econômicas, o preconceito contra a mulher e a ética no trabalho nos são apresentados de forma explícita, o que nos permite discutir os assuntos.
Naquela época os EUA passavam pelo período de Segregação Racial, que consistia na separação entre brancos e negros. No filme, negros quando andam na rua desviam seu percurso para que os brancos possam passar, ou, quando entram em ônibus, dirigem-se para os fundos, pois os brancos deviam se sentar na frente. No hospital onde Vivien trabalha, os médicos o olham com desprezo toda vez que se dirige ao laboratório ou quando é solicitado pelo Dr. Blalock. Existe ainda o episódio em que os dois amigos vão à galeria de arte e o segurança do local expulsa Vivien do estabelecimento sob o pretexto de que "os faxineiros devem bater ponto na entrada dos fundos".
Exemplos como esses retratam como era a concepção da sociedade naquela época. Muitas vezes – quando não, sempre – as pessoas entendiam esses comportamentos como sendo naturais, já que eram costumes tão fortemente cimentados. Várias das próprias vítimas se conformavam e se acomodavam com a situação, tanto que os próprios negros estranhavam a condição de Thomas de estar vestido com um jaleco branco e trabalhando dentro de um laboratório médico. Talvez por isso tardou para que a igualdade social fosse cobrada pelos indivíduos e os "mandamentos" da cartilha dos direitos humanos saíssem do papel para ganharem voz.
Além desse tipo de estereótipo, é observado no filme que as mulheres na época sofriam muita discriminação no ambiente profissional, o que ainda ocorre hoje, embora não exista mais a mesma conformidade por parte da sociedade. A Dra. Taussig, além de ouvir as piadas preconceituosas de outros doutores, apenas teve seus trabalhos realmente reconhecidos quando o Dr. Blalock os assumiu de fato. Assim podemos ver como as mulheres tinham pouca força na tomada de decisões ou na idealização de projetos.
Tudo isso mostra o que foi preciso superar para que se chegasse à configuração de sociedade em que hoje vivemos, a qual, mesmo longe de ser dignamente sustentável, mostra-se muito menos estagnada. 
Mudanças ocorreram, sem dúvidas, mas paradigmas do passado ainda assombram o presente, tal como o já muito antigo desentendimento existente entre a religião e a ciência, tema que também é apresentado no filme. É visto como os ideais e propósitos que caracterizam essas duas construções humanas se chocam todas as vezes que questões polêmicas são postas em cheque. Em um momento, o padre da localidade chega a intervir com argumentos de que a medicina não tem o direito de modificar a obra divina, alegando que mais tarde os envolvidos em qualquer violação dessa tal vontade sofrerão as consequências.
Padrões sociais como esses às vezes podem vir a prejudicar a manutenção da sociedade como um todo, o que poderia ser resolvido com um pouco mais de bom senso. É claro que hoje a religião é muito mais flexível e tolerante que em tempos remotos - como no filme -, mas a guerra que perdura ainda atrasa a ascensão de uma sociedade mais mais justa e evoluída.
O desfecho do filme nos deixa com a sensação de que sempre existe alguém que toma alguma iniciativa para mudar o mundo. Por trás dos valores igualitários que tanto prezamos nos tempos modernos, houve gente lutando, humilhando-se, doando-se ao máximo para transformar a situação social. O fato de que Vivien teve seu trabalho reconhecido tardiamente mostra que as pessoas precisam se preparar para aceitar as mudanças e encarar que, às vezes, o orgulho e o individualismo podem ser deixados de lado para que um maior número de indivíduos possa usufruir igualmente dos benefícios conquistados pela luta daqueles que pensam além do próprio umbigo. O filme é excelente e está mais que recomendado.
Escrevi esta resenha em março de 2013 para uma disciplina da faculdade e, após algumas alterações, resolvi publicá-la aqui. Se você decidiu assistir ao filme após ler esta resenha ou se ela foi útil de alguma forma, deixe um comentário (mesmo que seja anônimo) com suas impressões para que eu saiba disso.

4 comentários:

  1. Assisti o filme em uma aula do ensino médio, creio que na disciplina de Sociologia. Recordo-me que fiquei perturbada com os fatos que foram jogados em minha cara pelo filme. Realmente, as coisas lentamente estão mudando, mas de forma indireta (ou não), algumas coisas continuam enraizadas em nossa sociedade de forma que é completamente incompreensível para mim.

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    1. Quando assisti, eu gostei bastante. Esses temas sempre me atraem...

      Eu gostei mais ainda quando finalmente desvendei de onde eram aqueles dois rostos conhecidos... Alan Rickman (Severo Snape, Harry Potter) e Mos Def (Ford Prefect no filme do Guia do Mochileiro) hahaha. Aposto que você não tinha reparado.

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    2. Não fiz essa conexão entre os atores.Excelente observação! rsrs

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  2. Uma aula de humanidade e de grandes interpretações. E Principalmente, uma aula de respeito para com grandes homens a quem a humanidade deve a vida, independente de sua cor.

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