Não seja você mesmo(a)!

3 de abril de 2019


Imagino que você já tenha escutado a frase “seja você mesmo(a)!” algumas centenas de vezes durantes sua vida. Esse conselho é bastante comum e é repetido como um mantra pelas pessoas que acreditam que “ser quem você é” é a forma mais autêntica de se apresentar ao mundo e expressar a sua própria personalidade. Parece fazer muito sentido acreditar que ser quem nós somos é um bom caminho para aceitar nossas próprias peculiaridades, mas você já parou para pensar sobre o que significa tudo isso? Bom, se você clicou no link deste texto, tenho bons motivos para acreditar que ao menos tem alguma curiosidade sobre o tema. Outras hipóteses prováveis para ter chegado até aqui são: 1) você não está satisfeito(a) com quem você é; 2) você tem dificuldade em ser de fato você mesmo(a) e quer tentar adotar outra estratégia; 3) você ainda não conseguiu descobrir quem você realmente é. Pois bem, vamos conversar um pouco...

Quando alguém diz que as pessoas precisam ser aquilo que elas são em sua essência, temos que refletir sobre duas questões. A primeira é “quem sou eu?” e a segunda, “qual é a nossa essência?”. Perceba que são duas perguntas extremamente difíceis de processar. Durante milênios os seres humanos têm tentado responder a isto, o que demonstra que “ser quem você é” é muito mais complexo do que sugere a simplicidade do conselho.

Antes de mais nada, afirmo que a busca por quem somos é uma busca inútil, e isso se explica pelo fato de que nós estamos mudando o tempo todo, portanto quando pensamos que descobrimos quem nós somos já deixamos de ser. Mudamos enquanto crianças, enquanto adolescentes, enquanto adultos, enquanto velhos e, pasme, enquanto mortos. Enquanto crianças, experimentamos as coisas pela primeira vez e a cada novo encontro mudamos um pouquinho. Enquanto adolescentes, enfrentamos o mundo e mudamos junto com ele. Adultos, temos a experiência a nosso favor e sabemos que não podemos cometer os mesmos erros do passado e assim mudamos a forma de agir. Enquanto velhos, colecionamos histórias, mas continuamos sendo transformados por elas. Por fim, quando morremos, as pessoas que ficam são as responsáveis por compartilhar nossas memórias e criar imagens diferentes sobre quem de fatos fomos durante a vida. Assim sendo, a pergunta “quem eu sou?” pode ser substituída por uma mais fiel a uma realidade que é mutável: “quem estou sendo?”.

A segunda pergunta, “qual é a nossa essência?”, tem muita relação com o questionamento sobre quem nós somos. Isso porque quando acreditamos que existe uma resposta para “quem sou eu?” automaticamente acreditamos que existe uma essência que nos define em última instância. Pois bem, se anteriormente entendemos que “não somos alguma coisa”, mas que ao invés disso “estamos sendo alguma coisa diferente o tempo todo”, parece simples concluir que não existe uma essência por trás do nosso eu. Algumas pessoas podem argumentar que, mesmo que mudemos o tempo todo, sempre existirá um “eu” imutável que se fará presente em todos as situações da vida, como uma unidade indivisível e representativa de nossa dita essência, que por vezes nos é dada de forma divina. Bom, na verdade as reações e comportamentos semelhantes a diferentes situações e episódios da vida não são a expressão do nosso “verdadeiro eu”, mas apenas uma manifestação da experiência que adquirimos durante a vida ou, em último caso, uma manifestação de nossos instintos mais primitivos, herdados geneticamente. Assim sendo, a busca por uma essência também seria uma busca inútil, pois na verdade o que temos são manifestações comportamentais com base em experiências e códigos genéticos.


Até aqui concluímos duas coisas: não há como definir o que somos com precisão, pois mudamos o tempo todo; e não há como falar em essência, pois na realidade o que temos são reações e comportamentos repetitivos (quando expostos a situações semelhantes) e adaptáveis (quando as situações são diferentes, mas exigem uma ajudinha da nossa experiência para definir a melhor forma de agir) . Depois de tudo isso, parece complicado se falar em “ser quem nós somos”, haja vista o que acabamos de concluir. Bom, destruir conceitos é fácil. A parte mais difícil é propor uma outra forma de enxergar o problema, mas não custa tentar...

Se não somos algo, mas estamos sendo, e se não existe uma essência, o que nos resta? Simples: aceitar que podemos ser aquilo que queremos ou aceitar que precisamos ser diferentes (tendo em vista as nossas vontades e as nossas necessidades). Isso é libertador, pois tira da gente o peso de ter que desvendar os mistérios da essência que reside no nosso suposto “eu” e nos dá a leveza de podermos ser quem nós quisermos ou mesmo ser aquilo que a situação exige que sejamos. Trocamos uma reflexão quase que mística, que tenta tirar conclusões sobre algo que não existe, por uma investigação mais racional e sincera sobre quem podemos de fato ser. Deixamos de lado a ideia de que temos que encontrar o nosso “eu” antes de qualquer coisa, e que só seremos felizes quando alcançarmos esse conhecimento, pela ideia de que somos livres para criarmos o nosso próprio “eu”, respeitadas as limitações que a própria vida moldou (seja de forma genética ou de forma aprendida) e que podemos ser felizes assim mesmo.

Sendo assim, não é errado que assumamos papéis diferentes em diferentes situações da vida; não precisamos ser os mesmos o tempo todo por ser um esforço inútil, já que de fato nunca somos os mesmos; não precisamos nos martirizar por não conseguir definir quem nós somos, porque realmente não somos, mas estamos sendo; não temos que aguardar o dia em que descobriremos qual nossa essência para sermos felizes, porque a essência não existe e podemos ser felizes hoje mesmo; não há problema se gostamos de alguém hoje e amanhã deixamos de gostar, porque isso não nos torna falsos ou cruéis, mas mostra apenas que somos sinceros com nossos próprios sentimentos e com as pessoas pelas quais sentimos algo; não precisamos nos auto afirmar o tempo inteiro, porque estamos em constantes mudanças e se insistimos em fazer parecer que somos algo, ao mesmo tempo estamos nos privando de experimentar as possibilidades da vida, mesmo aquelas que vão de encontro àquilo que pensamos sobre nós mesmos; entre muitos outros exemplos. Tudo isso nos ajuda, também, a ser mais tolerantes com as outras pessoas, porque elas também passam por todo esse processo de conhecimento sobre quem estão se tornando, e quando sabemos como funciona tudo isso é mais fácil aceitar que elas também merecem a liberdade de ser e fazer o que quiserem.

Para encerrar, mais uma vez sugiro cuidado para não cair na tentação de tentar descobrir mistérios que não existem e que são irrelevantes, além de dificultadores. Deixo o recado: não seja você mesmo(a)! Ao invés disso, seja quem você quiser ser e faça o que precisa ser feito hoje e, enquanto sobrar tempo, seja feliz!


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