Onde termina o Homem e começa o Mundo?

21 de julho de 2014

Onde começo e onde termino? Pensei se deveria me medir do dedinho do pé até o mais longo fio de cabelo, mas concluí que não seria suficientemente confiável. A questão me perturba bastante, talvez tanto quanto a definição do que sou. Aliás, essa medição depende da primeira definição, pois para saber quanto sou preciso saber, antes de tudo, que diabos eu sou. Fico preocupado porque não sei definir o que sou eu e o que é a outra pessoa quando nos abraçamos. Acredito que preciso conhecer esse limite, porque não quero continuar a me confundir com outro a cada novo abraço ou aperto de mão.
Juro que penso sobre isso há algum tempo. Essa confusão teve início quando tentei encontrar um limite para onde começavam e terminavam as coisas. Não consegui definir, porque me parece muito complicado. Se as coisas não mudassem tanto a todo instante, talvez fosse possível. Mas tudo está se desintegrando e se transformando o tempo todo! Parece que nada começa ou acaba, as coisas estão sempre indo e vindo, como se tudo fosse uma coisa só. Se é assim, sou apenas um pedacinho de tudo, mas ao mesmo tempo não existo separado, de modo que dizer que sou uma parte do bolo não faz sentido nenhum, uma vez que sou o próprio bolo.

Foi com a leitura do livro de André Cancian (O vazio da Máquina - Niilismo e outros abismos) que consegui encontrar uma resposta bastante interessante acerca disso tudo, que vem atormentando minha cabeça há muito tempo e que nunca consegui definir com palavras tão bem empregadas quanto as dele.
E aproveito a ocasião para dizer que a leitura de obras com teor filosófico é gratificante. Você sempre encontra os próprios pensamentos inacabados que se tem no chuveiro ou na janela do ônibus nesses livros. É incrível.

Apesar de relativamente curto, o trecho é bastante profundo, portanto só leia se estiver realmente interessado(a) e se achar que uma resposta completamente materialista e objetiva à pergunta "Onde termina o Homem e começa o Mundo?" é digna de sua curiosidade. Caso contrário, relaxe e continue vivendo sua vida da forma como achar melhor.
Com a palavra, André Cancian:


"[...] O homem é composto por aproximadamente 70% de água. Enquanto essa água estiver, digamos, em seu cérebro como componente das reações químicas que o mantém vivo, ou em qualquer outra parte de seu corpo, será também um homem. Então a água é homem na medida em que compuser o sistema biológico que desempenha esse papel previamente definido. O mesmo vale para os 30% restantes, que são proteínas, gorduras, açúcares, ácidos nucleicos etc. Sabemos que o homem só permanece vivo na condição em que a matéria que constitui seu corpo seja trocada permanentemente. Então em algum momento a água que estava em seu cérebro, e que o permitiu pensar que precisava cortar as unhas, será expelida de seu corpo. A água deixará de ser um homem para ser precisamente o quê? Exatamente o que era antes de ser ingerida: nada; só um conjunto de moléculas de oxigênio e hidrogênio, como sempre foi, como nunca deixou de ser.

A não ser que pensemos que os átomos adquirem alguma aura mágica após a absorção e a perdem após a excreção, temos de admitir que o conceito subjetivo de homem, que nós próprios inventamos, é algo que cria uma distinção subjetiva e qualitativa entre esse homem, que é um arranjo específico de matéria, e as demais coisas, que são arranjos de matéria dispostos de modo diverso. Ambas as coisas, no fundo, são exatamente a mesma coisa: matéria. Tudo o que fizemos foi classificar, dar nomes aos bocados de átomos que nos parecem importantes, e as distinções que criamos com isso são apenas convenções. Essa distinção que vemos entre homem e não-homem nunca poderia ser objetiva porque, por exemplo, as moléculas de água no rio, na chuva ou no cérebro têm, objetivamente, a mesma natureza. Sejam quais forem as situações em que se encontrem, não exibem qualquer diferença discernível em seu comportamento físico.

Se isso se aplica não somente à água, mas também a tudo o que compõe o homem, e se o homem é composto pela mesma matéria que constitui todo o resto do universo, onde exatamente poderíamos encontrar uma fundamentação objetiva para a distinção entre o homem e o mundo? Entre a água em seu sangue e a na torneira? Entre o oxigênio em seu sangue e o na atmosfera? Não podemos - ou os rios já estariam humanizados pela nossa urina cheia de essências e realidades maiores. Tudo o que fazemos é criar definições subjetivas de caráter convencional, nas quais o que levamos em consideração é a utilidade prática de se designar esse arranjo específico de matéria pelo termo homem.
[...]
Assim, ao aceitarmos que o homem é composto pela mesma matéria que compõe todo o resto do universo, e que esta se comporta da mesma forma, estando ou não em seu corpo, isso implica rejeitar a distinção entre homem e não-homem. Nessa ótica, se houvesse um homem sentado em uma cadeira, seu corpo e a cadeira não poderiam ser encarados como coisas distintas, objetivamente diferentes. Tudo passa a ser visto como uma sopa indistinta de átomos. A distinção entre homem e cadeira só surge após delinearmos critérios subjetivos de classificação, que são completamente arbitrários. Não que tais critérios sejam inúteis, pois não são. O fato de algo ser subjetivo não é uma objeção à sua insignificância, só uma condição de existência: a condição de existir como fenômeno subjetivo, como uma ótica de um sujeito, não como uma "essência de ser". Em nenhum sentido isso poderia ser usado como justificativa para remover o valor da cadeira ou do homem, visto que coisas como valor, significado, sentido só existem dentro da esfera subjetiva, nunca no mundo objetivo.

Diante disso, alguém poderia dizer: como se pode afirmar que, ao olhar este objeto, não exista uma pessoa vendo este objeto?! Naturalmente que, para todos os efeitos, existe uma pessoa vendo esse objeto. Só que a pessoa, enquanto um sistema biológico maquinal, assim como sua notável capacidade de converter energia luminosa em imagens mentais, é um fenômeno, e como tal deixará de existir - ou, melhor dizendo, de acontecer - assim que o encadeamento material que deu origem ao fenômeno cessar, resultando num velório. Com a morte do indivíduo, deixa de existir esse universo subjetivo no qual havia uma pessoa que via objetos - e, quando um universo subjetivo desaparece, não sobram disso quaisquer vestígios, assim como não sobram vestígios de filmes quando uma televisão é desligada.
[...]"

Ufa, hein?!

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