Sob o sustento de um divã #02

28 de junho de 2014

[...]
Ela entrou no consultório decidida:
-Hoje quero apenas contar-lhe um sonho que me invadiu a mente noite passada. Nada de grandes questões existenciais ou problemas com minha falta de tato para com a realidade. Considere que hoje é seu dia de sorte.
-Ah, é? E como você descreve esse sonho, senhorita cabeça-dura? - ele já havia se acostumado com tantas variações daquela mesma pessoa.
-Consigo me lembrar de algumas coisas - disse a jovem, dirigindo-se ao mesmo divã que encontrara há uns onze meses atrás, em seu primeiro dia de "conversa fiada", como costumava chamar a terapia. - As portas e as janelas da casa estavam todas trancadas. Meus pais estavam desesperados, e meu irmão não estava em situação diferente. Não que eu pudesse ver, mas eu sabia de tudo isso. De repente eu comecei a sentir um calor terrível. A casa pegava fogo e eu previ que nós iríamos morrer. Não juntos, porque estávamos em locais diferentes da casa, sabe? Como se o destino estivesse nos separando no fim da vida...
-Mas você não acredita em destinos.
-Não - ela havia dito isso a ele nos primeiros dias. - Bem, todos iríamos morrer e eu não sabia o que sentir. Como escolher o que sentir no momento da morte? Simplesmente não dá. No entanto, minha morte não veio. Não me recordo bem desse momento, mas de alguma forma eu consegui escapar. Um braço invisível me puxou rumo às paredes e me libertou daquela morte terrível. Infelizmente, minha família não teve a mesma sorte.
-Então, você foi a única a sobreviver?
-Sim, e foi horrível. Todos diziam que as coisas ficariam bem, mas como poderiam ficar bem se eu havia acabado de perder tudo que tinha por conta de um maldito incêndio? A maioria das pessoas não sabe o que dizer para alguém que acabou de sofrer uma perda desse tipo, essa é a verdade. Parece que, para não se sentirem tão culpadas e inúteis por não poderem oferecer alguma espécie de conforto naquele momento infeliz, acabam falando besteira pra desencargo de consciência. Não foi diferente no sonho... Essas pessoas são iguais em todos lugares, não interessa onde você esteja. E, além disso, elas não se importavam nem um pouco. É como se tudo fosse bastante normal, entende?
-A banalização da morte?
-Era algo mais estranho que isso. Fez-me sentir mais solitária que em qualquer momento da vida. Eu acordei achando que tudo era real.
-E o que sentiu quando descobriu que não passara de um sonho?
-Eu me senti aliviada por não ter perdido os meus livros, que ficam no guarda-roupas.
-Você perdeu sua família e estava preocupada com os seus livros, mocinha?
-Sim. Comecei a pensar em algumas estratégias para salvá-los em caso de incêndio, como jogar todos pela janela, tirar as minhas roupas do corpo e molhar meu cabelo com a água da minha garrafa para que ele não se queimasse, enquanto eu driblava a morte e os resgatava do lado de fora.
-Você só pode estar brincando...
-Por que a surpresa? Eu já havia sentido toda a tristeza pela morte da minha família em sonho, e essa não foi a primeira vez que aconteceu algo desse tipo. Estou tão acostumada que não vejo mais a necessidade de me sentir aliviada após esse episódios. A sensação de alívio, nesses casos, nada mais é que um lembrete para me dizer que não posso deixar de cultivar alguma afeição pelas pessoas que estão ao meu redor. Esse tipo de construção comportamental é totalmente aceitável na minha cabeça, mas eu não preciso me preocupar tanto com os sonhos, não é mesmo?
-Bom, os sonhos sempre podem significar algo.
-Podem significar o que eu quiser que signifiquem, desde que eu me convença disso.
-Então é assim que você encara?
-São apenas sonhos, doutor...

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