Eu, inadequado

5 de janeiro de 2015

Imagem: Na Natureza Selvagem (filme de 2007).
Meus dias se resumem a divagações sobre a maneira como eu encaro minha inadequação. Tenho lido livros que me dão ótimas referências. Alguns deles foram escritos por pessoas que, assim como eu, são inadequadas ou ao menos imaginam que são. Não é surpresa o fato de que as coisas que mais me agradam sejam aquelas que envolvam pessoas e suas maneiras perturbadas de viver a vida. É que costumo sentir atração por aquilo que me faz lembrar de quem sou, como se vivesse procurando no mundo espelhos que me ofereçam minha própria imagem refletida. "E se olhas por longo tempo para dentro de um abismo, o abismo também olha para dentro de ti [1]." Além desses livros, tenho também alguns filmes, algumas músicas e, bom, minha própria companhia...

Como um mochileiro com suas bugigangas nas costas, eu tenho viajado por caminhos que ultimamente têm me levado a mim mesmo. Os caminhos são as reflexões; as bugigangas, meu background e as novas conclusões que vou tirando no caminho. A cada nascer do sol são levantadas questões sobre as agonias da existência, o destino do planeta ou o meu mau hábito de entrar no chuveiro e ficar por lá até perceber que gastei muito tempo olhando para as paredes pensando e esqueci de me ensaboar. Penso sobre a complexidade e as inutilidades da vida enquanto estou de pé, mas quando me deito os problemas se voltam para onde eles sempre voltam: eu mesmo. Essa minha inadequação é tão inseparável que de uns tempos para cá eu resolvi aceitar sua presença sem reclamar. Encaro-a como um roteirista de filmes dramáticos encara seus roteiros: como aquele detalhe que dá a razão de ser às suas histórias, da mesma forma a minha inadequação é o que dá sentido à minha vida. Assim, abraçado às minhas queixas e aos meus questionamentos, sigo vivendo.

Ouvi dizer que é o mau da idade, e que depois passa. A saber, tenho quase vinte e um, e os jovens geralmente são assim, inadequados, desconfiados dos mistérios da existência e do contrato social, ainda experimentando um pouco daquela energia que pulsava no ápice da adolescência, assustados por saber que agora precisam fazer parte do jogo da vida - jogo esse ridicularizado quando, há pouco tempo, tudo era motivo de gozação.

Essa afirmação é curiosa e chega a me incomodar às vezes, porque por um lado eu sei que há nela certa verdade, mas por outro parece reduzir a problemática de não se sentir adequado a uma simples equação envolvendo falta de idade e alguma rebeldia juvenil. Se assim é, devo continuar esperando chegar os quarenta de idade sem me preocupar muito com a minha dificuldade em saber se quero mesmo fazer parte desse teatro social da forma como me é oferecida?

Sempre que procuro uma resposta a essa pergunta recebo em troca um sermão de alguma pessoa bem resolvida que passou por essa fase em algum momento da vida e diz entender minha situação. Resumidamente, minha inadequação é passageira, e quando não, irá se tornar menos incômoda com o passar do tempo, ou, pelo que se dá para concluir de toda essa bobagem, a solução para quem não consegue se adequar com facilidade é aceitar fazer parte do jogo sem provocar escândalo. Bom, se conselho fosse bom as pessoas não os dariam de graça...

Minha inadequação não vem de uma simples rebeldia juvenil, não. Ela tem algum fundamento teórico. Sim, dou tanta importância à minha não adequação que frequentemente desenvolvo teorias tendo ela como base. Nas épocas de Ensino Médio, por exemplo, eu me perguntava por que razão eu deveria ir para a faculdade. Nunca houve uma resposta filosoficamente sustentável e isso me deixava chateado, porque eu frequentava um cursinho pré-vestibular e não sabia explicar para mim mesmo o motivo de estar ali, cantando músicas sobre a colocação pronominal. Eu pretendia cursar Psicologia, porque sempre fui fascinado por pessoas se comportando, mas me assustava saber que eu teria que trabalhar como psicólogo. Não dava só para estudar e pronto? Não dá para gostar de algo pura e simplesmente? A gente sempre precisa fazer alguma coisa com aquilo que a gente aprende? Sim, um dia teremos que devolver o que o mundo investiu em nós. Com juros. Além disso, a gente precisa sempre justificar o motivo para gostar de algo. São as regras do jogo e não fui eu quem as impôs. Embora confuso sobre quais botões apertar, sou apenas mais um jogador.

Bom, no fim das contas eu acabei me inscrevendo para o curso de Engenharia Eletrônica, e isso faz tão pouco sentido quanto qualquer outro acontecimento na minha vida, de modo que tentar explicar o motivo é perda de tempo. O resultado disso é que após dois anos eu tranquei o curso. Quando me perguntam o motivo eu tenho que me justificar de mil maneiras, mas a verdade é que eu não quis dar continuidade porque não dava sentido algum à minha existência, apesar de ter demorado a admitir isto. Se não é um motivo suficiente para quem pergunta, eu não me importo. Odeio me explicar.

A consequência de uma escolha como essa é conviver com a dura quebra do status quo. Se antes eu tinha um roteiro a seguir todas as manhãs, agora eu tinha que decidir o que fazer dos meus dias. Se antes eu sempre tinha com quem conversar sobre aquele filme, agora eu teria que esperar encontrar algum amigo para fazer isso. Se antes eu tinha um motivo para reclamar das coisas, agora o que me restava era aceitar a morte de uma fase da vida e viver o seu luto com o máximo de profundidade que eu fosse capaz de aguentar, sem me queixar - afinal, a decisão havia sido minha.
Fotografia: Olivier Valsecchi.
Eu senti as dores da minha inadequação de uma forma como nunca antes havia ocorrido, e só descobri a minha tendência ao isolamento ao ter que passar um bom tempo convivendo comigo mesmo e me ver gostando disso. Às vezes, quando eu me sentia sozinho, eu me lembrava de uma frase dita no filme Quando Nietzsche chorou, e conseguia tirar dela algum consolo:
"Você deve se preparar para se consumir em suas próprias chamas. Como tornar-se outro se primeiro você não se tornar cinzas?"
Encarar a minha inadequação de frente foi importante por vários motivos, além de me tornar outro enquanto ressurgia das cinzas. É ótimo aprender a gostar da própria companhia e se divertir com as coisas que dá para se descobrir ao se levar a sério. E, isso eu digo com propriedade, se há uma coisa importante a aprender nessa vida é gostar da própria companhia, afinal a única certeza que temos é que até a nossa morte como sujeitos precisaremos conviver com nós mesmos todos os dias. Não há outra saída logicamente possível.

Como dizia no início, tenho passado os meus dias divagando sobre minha inadequação. Henry Thoreau passou um bom tempo nos bosques porque, evidentemente, não se adequava a tudo aquilo que a sociedade moderna tanto amava; Nietzsche andava pelas montanhas refletindo sobre os problemas da humanidade e questionando os criadores de ídolos. Longe de mim querer me comparar a esses grandes homens ou tentar me justificar em suas atitudes, mas eu, numa versão mais moderna e menos convidativa, faço minhas reflexões no meu quarto mesmo, às vezes em frente ao computador, assistindo algum filme ou palestra que me faça refletir um pouco, às vezes escrevendo qualquer coisa que me permita organizar os pensamentos, às vezes apenas sentindo...

Eu continuo inadequado, e penso que assim sempre será - aliás, quem não é? Acredito que não é um mau da idade, tampouco rebeldia juvenil. É tudo muito mais profundo, e pretendo recorrer aos meus livros, aos meus filmes, às minhas músicas, à minha escrita e à minha própria companhia sempre que sentir que estou começando a me adequar, uma vez que só enxergo algum sentido para essa caminhada convivendo com a minha inadequação. Já me convenci de que jogar o jogo da vida é necessário, principalmente porque a outra opção é desistir dela, e não levo em conta essa possibilidade, pois se existe algo que eu gosto é sentir, e sentir é uma peculiaridade de quem está vivo, não é?

[1] NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem e do Mal: quarta parte, Ditos e Interlúdios. Porto Alegre: L&PM, 2011. 256p.

12 comentários:

  1. O primeiro texto do ano com tamanha profundidade. Que bonito! Sim, somos todos inadequados e a possibilidade de trilhar por um caminho construído e, tantas vezes, desconstruído por você vai acontecer de novo e de novo. Essa ruptura turbulenta e necessária certamente te acompanhará por muitas etapas da vida, lembrando-te o quanto é inadequado e te convidando a buscar um novo sentido ao que já não faz mais nenhum.

    Aproveite a sua companhia, certamente é a melhor que pode ter! Beijos!

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    1. Oi, Verônica!

      Você tem razão. Essa ruptura com certeza irá me acompanhar durante a vida, do mesmo modo como tem sido até hoje. Não teria como ser diferente, já que são as rupturas que me movem...

      Vou sempre aproveitar minha companhia mesmo. Delegar as razões da minha existência para outras pessoas é o maior pecado que eu posso cometer haha

      Beijos ^^

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    2. cala a sua boca idiota,o que se escreveu nem tem sentido

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  2. Texto e comentários profundos. Um texto de novos rumos nesse novo ano. Mas sempre ouço que é assim a vida e que devemos aceitar logo o seu jogo assim que percebemos que os blefes podem nao ser aceitaveis. Toda essa questão sobre inadequação lembrou-me, mesmo de forma indireta, o personagem Antoine do livro Como me tornei estupido..
    Uma coisa devo concordar, que a nossa melhor companhia somos nós mesmos.

    Desculpe a falta de acentos, faz parte dos maus dispositivos.

    Abraço!

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    1. Novos rumos... novos rumos. Como é complicado. Se tomar decisões já é difícil, imagine re-tomar uma decisão hahaha. Mas vivo para descobrir as coisas que me motivam a continuar vivendo. A outra opção é vegetar rs.

      Já adicionei o livro como "Quero ler" no Skoob (não conhecia).

      Obrigado pelo comentário!

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  3. Oi, Rodrigo.
    Mas que texto profundo. Adorei.
    Acredito que cada um de nós possui um lado inadequado e que não é mau da idade.

    M&N | Desbrava(dores) de livros - Participe do nosso top comentarista de fevereiro. Você escolhe o livro que quer ganhar!

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  4. Rodrigo, então, acho que te entendo, não vou falar com certeza, mas eu te compreendo.
    Somos feitos de escolhas, e caos, principalmente caos, e acasos, ops, parei, rs.
    Mas, acho que a maioria dos pais de hoje e até mesmo os adolescentes deveriam ler seu texto. Pela profundidade e pela verdade.
    Tua escrita está mais madura, não sei, talvez por tudo que você passou, por tudo que cresceu, mas continuo me admirando com você.
    Em relação a estudar porque quer, e não porque tem que,hm, "viver" daquilo. Sei lá, tenho na cabeça que, vou estudar algo que eu goste e dê pra viver com isso, e depois eu estudo o que eu quero, só pra aprender mesmo. E eu me fascino por Sociologia. Então, esse "planinho", já tá na minha cabeça, mas as vezes quero só procurar um emprego e ir morar só, porque morar com os pais ainda, as vezes dá um desanimo, quando tem crise existencial então, acho que não faço nada na minha vida, rs.
    Eu até me explico, mas não gosto quando a pessoa quer entender e apenas julga quando fazemos algo porque simplesmente queremos. E nesse fato eu te entendo. <3
    Acho que me perdi até no meu comentário.
    Mas teu texto tá imenso e profundo e lindo e tão tu que eu me identifico ainda mais, rs.
    Beijos.

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    1. Oi, Elania! Há seis meses eu estou repetindo pra mim "preciso responder a Elania... preciso responder a Elania" e nunca respondo, embora tenha lido seu comentário no mesmo dia que postou. Perdoe a minha preguiça.

      Eu também vejo que escrevo de forma mais madura hoje. Na verdade eu amadureci bastante desde o início do blog até hoje (o blog atravessou minha adolescência)... o legal de se ter um blog é isso: ter um registro passível de análises futuras rs.

      Eu passo a maior parte da vida na inércia... se ninguém mexe comigo eu fico paradinho; se algo ocorre externamente a mim eu sigo em velocidade constante até outra força me tirar da inércia. Terrível, porque a força deveria vir de mim, não de algo externo... do jeito que tá eu sempre dependo de algo fora de mim, como se eu nunca decidisse nada.
      Eu já pensei como você: vou fazer o que tem de ser feito hoje; amanhã faço o que gosto. Só que vi que isso tem muitos problemas... 1) vou empurrando com a barriga e nunca faço o que de fato gosto; 2) fazer o que tem de ser feito toma tanto tempo que não sobra nadinha pra buscar fazer o que eu gosto; 3) o amanhã pode não chegar. Nessa brincadeira, estou aqui vivendo no automático (preciso criar vergonha na cara).

      Obrigado pelo elogio! Gosto dos seus comentários, já falei né?

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  5. Ah.
    Olha, conviver com a gente mesmo é bom porque acabamos conhecendo não só mais a nós mesmos, mas também o mundo ao nosso redor.
    Mas tenha mais amigos, tenha um circulo de amigos constante, que te encontrem uma vez na semana pra bater papo, uma vez no mês pra dar uma saidinha. Não espera encontrar ninguém não. É bom ter amigos sim, mas não precisa de muitos só aqueles que passariam uma noite acordado do teu lado só pra jogar videogame contigo ou assistir um filme.
    Estar só sempre é uma opção.
    E sei que você sabe disso.
    Beijo, de novo, rs.

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    1. Preciso seguir seu conselho. Esses dias eu parei pra pensar e percebi que me isolei de todos os meus amigos (literalmente todos). Depois que tranquei a faculdade perdi a convivência. No trabalho são todos mais velhos, têm suas famílias, perfis diferentes... não é igual antes.
      A solidão às vezes bate, é fato, e o que eu faço é evitar pensar nela.
      Não me sinto triste, mas parece que falta um pouco de cor, entende?
      "Estar só sempre é uma opção." Vou me lembrar disso.

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