Foi com a leitura do livro de André Cancian (O vazio da Máquina - Niilismo e outros abismos) que consegui encontrar uma resposta bastante interessante acerca disso tudo, que vem atormentando minha cabeça há muito tempo e que nunca consegui definir com palavras tão bem empregadas quanto as dele.
E aproveito a ocasião para dizer que a leitura de obras com teor filosófico é gratificante. Você sempre encontra os próprios pensamentos inacabados que se tem no chuveiro ou na janela do ônibus nesses livros. É incrível.
Apesar de relativamente curto, o trecho é bastante profundo, portanto só leia se estiver realmente interessado(a) e se achar que uma resposta completamente materialista e objetiva à pergunta "Onde termina o Homem e começa o Mundo?" é digna de sua curiosidade. Caso contrário, relaxe e continue vivendo sua vida da forma como achar melhor.
Com a palavra, André Cancian:
"[...] O homem é composto por aproximadamente 70% de água. Enquanto essa água estiver, digamos, em seu cérebro como componente das reações químicas que o mantém vivo, ou em qualquer outra parte de seu corpo, será também um homem. Então a água é homem na medida em que compuser o sistema biológico que desempenha esse papel previamente definido. O mesmo vale para os 30% restantes, que são proteínas, gorduras, açúcares, ácidos nucleicos etc. Sabemos que o homem só permanece vivo na condição em que a matéria que constitui seu corpo seja trocada permanentemente. Então em algum momento a água que estava em seu cérebro, e que o permitiu pensar que precisava cortar as unhas, será expelida de seu corpo. A água deixará de ser um homem para ser precisamente o quê? Exatamente o que era antes de ser ingerida: nada; só um conjunto de moléculas de oxigênio e hidrogênio, como sempre foi, como nunca deixou de ser.
A não ser que pensemos que os átomos adquirem alguma aura mágica após a absorção e a perdem após a excreção, temos de admitir que o conceito subjetivo de homem, que nós próprios inventamos, é algo que cria uma distinção subjetiva e qualitativa entre esse homem, que é um arranjo específico de matéria, e as demais coisas, que são arranjos de matéria dispostos de modo diverso. Ambas as coisas, no fundo, são exatamente a mesma coisa: matéria. Tudo o que fizemos foi classificar, dar nomes aos bocados de átomos que nos parecem importantes, e as distinções que criamos com isso são apenas convenções. Essa distinção que vemos entre homem e não-homem nunca poderia ser objetiva porque, por exemplo, as moléculas de água no rio, na chuva ou no cérebro têm, objetivamente, a mesma natureza. Sejam quais forem as situações em que se encontrem, não exibem qualquer diferença discernível em seu comportamento físico.
Se isso se aplica não somente à água, mas também a tudo o que compõe o homem, e se o homem é composto pela mesma matéria que constitui todo o resto do universo, onde exatamente poderíamos encontrar uma fundamentação objetiva para a distinção entre o homem e o mundo? Entre a água em seu sangue e a na torneira? Entre o oxigênio em seu sangue e o na atmosfera? Não podemos - ou os rios já estariam humanizados pela nossa urina cheia de essências e realidades maiores. Tudo o que fazemos é criar definições subjetivas de caráter convencional, nas quais o que levamos em consideração é a utilidade prática de se designar esse arranjo específico de matéria pelo termo homem.
[...]
Assim, ao aceitarmos que o homem é composto pela mesma matéria que compõe todo o resto do universo, e que esta se comporta da mesma forma, estando ou não em seu corpo, isso implica rejeitar a distinção entre homem e não-homem. Nessa ótica, se houvesse um homem sentado em uma cadeira, seu corpo e a cadeira não poderiam ser encarados como coisas distintas, objetivamente diferentes. Tudo passa a ser visto como uma sopa indistinta de átomos. A distinção entre homem e cadeira só surge após delinearmos critérios subjetivos de classificação, que são completamente arbitrários. Não que tais critérios sejam inúteis, pois não são. O fato de algo ser subjetivo não é uma objeção à sua insignificância, só uma condição de existência: a condição de existir como fenômeno subjetivo, como uma ótica de um sujeito, não como uma "essência de ser". Em nenhum sentido isso poderia ser usado como justificativa para remover o valor da cadeira ou do homem, visto que coisas como valor, significado, sentido só existem dentro da esfera subjetiva, nunca no mundo objetivo.
Diante disso, alguém poderia dizer: como se pode afirmar que, ao olhar este objeto, não exista uma pessoa vendo este objeto?! Naturalmente que, para todos os efeitos, existe uma pessoa vendo esse objeto. Só que a pessoa, enquanto um sistema biológico maquinal, assim como sua notável capacidade de converter energia luminosa em imagens mentais, é um fenômeno, e como tal deixará de existir - ou, melhor dizendo, de acontecer - assim que o encadeamento material que deu origem ao fenômeno cessar, resultando num velório. Com a morte do indivíduo, deixa de existir esse universo subjetivo no qual havia uma pessoa que via objetos - e, quando um universo subjetivo desaparece, não sobram disso quaisquer vestígios, assim como não sobram vestígios de filmes quando uma televisão é desligada.
[...]"
Ufa, hein?!
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